NEEMIAS, DIAGNÓSTICO E
PROCESSAMENTO
"Os muros estão derribados e
as suas portas, queimadas"
por Valdir Steuernagel
Pr. José
Antônio Corrêa
O
artigo O vírus da destruição e o gene da construção ("Reflexão",
mar/abri - Revista Ultimato) nasceu sob o impacto do seqüestro e assassinato do
prefeito de Santo André, Celso Daniel. A essa morte seguiu-se uma espécie de
comoção nacional e uma ira coletiva. A nação brasileira queria dizer basta. Até
os políticos deram uma mobilizada nas coisas e houve arroubos verbais que
indicavam a necessidade de se abordar seriamente a crise da segurança nacional.
Entretanto, o problema continua, a agenda das prioridades políticas foi
estabelecida e os políticos estão muito preocupados com as eleições de outubro.
O fato é que precisamos fazer da segurança um item prioritário de todos nós.
Assim, quem sabe até os políticos procurem olhar para a situação com seriedade
e com vontade política transformadora.
Neste
artigo eu proponho dar continuidade a esse assunto. Inspirado no texto bíblico,
quero perguntar pela atitude do cristão diante da crise, da dificuldade e do
sofrimento. A personagem bíblica que irá nos acompanhar é Neemias. A sua
relevância vem do fato de ele precisar optar entre manter a sua posição
confortável no palácio real persa ou arregaçar as mangas e fazer algo na sua
decrépita Jerusalém. Para fazer alguma coisa, no entanto, é preciso querer
saber, e saber, o que está acontecendo.
O CIDADÃO DO REINO DE DEUS NÃO É
AVESTRUZ
Dizem
que o avestruz tem um estômago de ferro, capaz de absorver qualquer coisa.
Outra característica dessa ave é a estranha atitude de enfiar a cabeça na terra
diante do perigo: assim ele nos diz que não quer ver nem saber.
Há
muito Cristão-avestruz por aí. Enfia a cabeça na terra para não precisar, ou
por não querer, ver nada, E às vezes a Igreja acaba sendo esse lugar onde nos
enfiamos para não ver nada, para não participar dos conflitos do mundo. A
própria Igreja, como estrutura, pode até fomentar essa atitude. Ela se anuncia
como "um lugar de paz" e enche a nossa agenda de atividades. Assim,
vivemos na igreja e não vemos o que acontece lá fora. Aliás, nem temos tempo
para Isso, pois estamos sempre em cima da hora para mais uma reunião da
igreja...
Essa
espiritualidade da fuga é doentia. É alienante. Não nos permite olhar a vida
como ela é. Todavia Deus não faz isso nem concorda com essa atitude. Já pensou
se Ele desse uma de avestruz diante do nosso pecado? Pois com avestruz não há
cruz.
O CIDADÃO DO REINO QUER SABER DAS
COISAS
Quem
entra em meu escritório dá de cara com um quadro que focaliza a janela de uma
igreja. Ele me foi dado por alguns irmãos, sinalizando o seu apoio ao meu
chamado para servir por meio da Visão Mundial Internacional. O quadro mostra a
foto de uma janela da igreja, tirada de dentro para fora, da igreja para o
mundo. A igreja precisa ter janelas, não apenas para ser iluminada pela
claridade que vem de fora, mas para enxergar o mundo do qual ela faz parte. É
preciso saber e ver o que acontece lá fora. Aliás, precisamos ir lá fora. De
descendência judaica, Neemias vive no exílio. Mas vive bem. Como copeiro do rei
da Pérsia, conseguiu uma boa posição. Tranqüila. De bom reconhecimento e com
bom nível social. Mas quando seu irmão Hanani vem visitá-lo ele quer saber das
coisas. Quer saber do seu povo e das suas condições de vida. Ele não dá uma de
avestruz. Assim diz o texto:
"As
palavras de Neemias, filho de Hacalias. No mês de quisleu, no ano vigésimo,
estando eu na cidadela de Susã, veio Hananí, um de meus irmãos, com alguns de
Judá: então, lhes perguntei pelos judeus que escaparam e que não foram levados
para o exílio e acerca de Jerusalém. Disseram-me: Os restantes, que não foram
levados para o exílio e se acham lá na província, estão em grande miséria e
desprezo: os muros de Jerusalém estão derribados, e as suas portas,
queimadas". (Ne 1.1-3.)
Neemias
olha para fora da janela do seu quarto, no palácio, e vê o seu povo sofrendo,
passando por crise de identidade e segurança. Os muros estão caídos e as
portas, queimadas. O povo já não sabe direito quem é e se percebe à mercê dos
inimigos. Neemias vê tudo isso com muita clareza.
O
cidadão do reino de Deus precisa ser um bom cidadão do mundo. Precisa estar ao
lado de Neemias na janela que lhe mostra a realidade do outro: pobreza.
insegurança e destruição. A fé cristã não fecha os olhos, ela os abre. Não nos
leva a uma espiritualidade zen, mas a uma postura que reflete encarnação. É
cristão de olho aberto. Postura de avestruz é coisa do capeta.
O CIDADÃO DO REINO SENTA-SE, CURVA-SE
E CHORA
Quando
cheguei à cidade de Bombaim, na Índia, já era madrugada. Assim, no caminho do
aeroporto para o hotel, não dava para ver muita coisa. Aos poucos, porém, fui
percebendo que o cenário era de pobreza absoluta. Fui vislumbrando corpos ao relento,
estendidos aqui e ali, tentando dormir sobre tábuas. Coisa triste de ver. Coisa
de chorar.
O
cristão chora. Ele chora pelo outro. Chora de dor e chora por misericórdia.
Jesus chorou quando contemplou Jerusalém. e com Ele devemos aprender a chorar.
O cristão não pode não chorar - pelas vitimas e pelos vitimadores, Pelas
crianças, pelas mulheres e pelos assaltados, Pelos meninos de rua, pelas viúvas
e por aqueles que vivem com medo. Pelos seqüestrados, ameaçados e violentados.
Por aqueles que choram - por dentro e por fora.
Da
janela do seu quarto Neemias caminha para a cama. Joga-se sobre ela e soluça.
Ele chora o choro convulsivo do coração de Deus. Hanani, ao seu lado, não sabe
o que fazer e decide ficar quieto. É preciso que ele fique quieto para que
Neemias possa chorar. A nossa fé deve levar-nos a chorar, e deixar-nos chorar.
Uma espiritualidade que não deixa chorar é superficial e, portanto, supérflua.
Engana a alma e nos desvia de um verdadeiro encontro com Deus.
Infelizmente
a igreja dos nossos dias não nos convida a chorar pelo outro. Ela quer se
especializar em enxugar lágrimas, e não em produzir lágrimas. Mas não se pode
enxugar o que não existe. E o que não há, muitas e muitas vezes, são as
lágrimas pelo outro. Na Igreja devemos ser desafiados e convidados a chorar
lágrimas de compaixão e de misericórdia. Temos conseguido ouvir o soluço de
Neemias?
O CIDADÃO DO REINO VIVE O LUTO,
JEJUA E ORA
Neemias
está inconsolável, Está de luto. Perdeu o apetite - e que ninguém insista em
colocar um prato diante dele. Do soluço, portanto, ele caminha para o luto e
soluça uma oração. Oração das entranhas. Oração segundo o coração de Deus.
Oração com as palavras das promessas de Deus. Oração que gesta esperança. A
oração de Neemias é muito rica, mas está marcada pelas lágrimas:
"E
disse: ah! Senhor, Deus dos céus, Deus grande e temível, que guardas a aliança
e a misericórdia para com aqueles que te amam e guardam os teus mandamentos.
Estejam, pois, atentos os teus ouvidos, e os teus olhos, abertos, para acudires
à oração do teu servo, que hoje faço à tua presença, dia e noite, pelos filhos
de Israel, teus servos; e faço confissão pelos pecados dos filhos de Israel, os
quais temos cometido contra ti; pois eu e a casa de meu pai temos pecado. Temos
procedido de todo corruptamente contra ti, não temos guardado os mandamentos,
nem os estatutos, nem os juízos que ordenaste a Moisés, teu servo. Lembra-te da
palavra que ordenaste a Moisés, teu servo, dizendo: Se transgredirdes, eu vos
espalharei por entre os povos; mas, se vos converterdes a mim, e guardardes os
meus mandamentos, e os cumprirdes, então, ainda que os vossos rejeitados
estejam pelas extremidades do céu, de lá os ajuntarei e os trarei para o lugar
que tenho escolhido para ali fazer habitar o meu nome. Estes ainda são teus
servos e o teu povo que resgataste com teu grande poder e com tua mão poderosa.
Ah! Senhor, estejam, pois, atentos os teus ouvidos à oração do teu servo e à
dos teus servos que se agradam de temer o teu nome; concede que seja bem sucedido
hoje o teu servo e dá-lhe mercê perante este homem. Nesse tempo eu era copeiro
do rei, (Ne 1.5-11).
Gostaria
de apontar para alguns aspectos dessa oração.
Primeiro,
temos a reverente invocação de Neemias; afinal, ele está falando com Deus;
Segundo,
ele faz uma oração de confissão; é uma confissão coletiva em que ele se percebe
um co-agente do pecado;
Terceiro,
vemos Neemias orando as promessas de Deus. O conteúdo da sua oração traz à
memória aquilo que Deus já falou no passado.
E,
por último, vemos nascer a oração do compromisso. Neemias toma-se aquele que vê
a sua vida entrando na resposta de Deus. E lá está ele se preparando para ser
resposta à sua própria oração.
Confesso
que tenho saudade de orações assim; uma oração molhada em lágrimas, curtida na
reverência, alimentada pela própria Palavra de Deus e gestando caminhos de
obediência. O Brasil precisa de orações assim. O Brasil precisa de menos
"nhenhenhém" espiritual e mais luto. Menos busca de "coração
apaziguado" e mais disponibilidade ativa para fazer diferença na
sociedade.
A
história de Neemias continua e nós vamos continuar olhando para ela. Hoje, no
entanto, ele nos convida a ver, soluçar e orar. Ver o que acontece, soluçar
pelo que vemos e orar para que Deus transforme as circunstâncias ao nosso
redor. Não é para Isso que nós, como igreja, estamos aqui?
Valdir
Steuernagel é pastor luterano e diretor do Centro de Pastoral e Missão, em
Curitiba, Paraná. E autor de, entre outros, "Para Falar das
Flores..." e "Outras Crônicas".